Tuesday, February 11, 2014

Jogo de Espelhos - JOSÉ RÉGIO



JOGO DE ESPELHOS 
JOSÉ RÉGIO

Entro... seja onde for. começo a disfarçar,
a fingir que estou bem, muito à vontade.
mas a verdade é que não sei como hei-de estar,
nem sei não deixar ver que esta é a verdade!

Suspeitando-me todos de possesso,
no olhar de toda a gente encontro o mesmo grito: "fora!"
correcto, sério, frio, amavelmente me despeço,
a fingir que não fui mandado embora...

Fora, o lamento do vento
embala-me, embebeda-me, adormenta-me.
sinto-me bem! que bem! todo embrulhado em sofrimento...
e o halo do martírio tenta-me.

Que bom que é ficar só, posto de lado,
subir a longa queda até ao fim,
chegar exausto, incompreendido, caluniado...!
e desato em soluços sobre mim.

Choro. choro na noite longa e lôbrega, transido
como um menino ruim atrás da porta. mas comigo,
consolo-me em sentir-me incompreendido,
porque o menino ruim não merecia tal castigo...

Assim a esta paródia do meu mal
se ajunta a minha megalomania:
julgo-me cristo numa cruz, camões num hospital,
e o supremo dandismo da desonra me inebria.

De dandi, volto, pois, aos clubes e aos salões.
visto a minha grandeza ante o furor deles e delas.
sofro, superiormente, obscenidades e empurrões.
sento-me, triste até á morte, a olhar os vidros das janelas...

Ora no espelho em frente, uma caricatura,
um rosto cego, mudo, escanhoado, empoado,
garante-me que sou aquela compostura,
esse sepulcro caiado...

Por que não torno para a rua?
enjoam-me os cristais, as luzes, os decotes.
que bom que deve ser passear lá fora, sob a lua,
serenissimamente, a colher miosótis!

Porém na rua, há uma taberna; há um bordel; há escuro;
há fêmeas; ópios; vinho; há desespero; há gosto...

É então que tu vens, tu, mestre que eu procuro!
É então que tu vens...!

E cospes-me no rosto.

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